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Ep 2: Nascer, Morrer, Reproduzir, 2021
Gabriel Massan
Giuliana Furci
Tempo de execução: 01:47
A conversa com Giuliana Furci foi realizada no dia 15 de julho de 2021, utilizando a plataforma ZOOM. O roteiro da entrevista foi desenvolvido por Marília Loureiro, curadora da Casa do Povo, em conjunto com e artista Daniel Lie e com a participação de Camila Marambio, curadora de pesquisa artística da Fundación Fungi.
Gabriel Massan foi convidado a reagir a esta conversa. Desenvolveu o vídeo “A dança de baixo” (Rio de Janeiro, 2022. Escultura digital, pintura digital e animação) e a série de cinco imagens “Memórias de nossos funerais: De Olinda ao Jardim da Saudade” (Rio de Janeiro, 2021, Still. Escultura e pintura digital). As passagens específicas às quais Gabriel respondeu aparecem em negrito ao longo do texto.
O título deste episódio é baseado em um comentário que Marília fez durante a conversa com Daniel, Camila e Giuliana. A transcrição da conversa foi editada por Ruli Moretti e traduzida por Daniel Lühmann (espanhol para português) e Kevin Kraus (português para inglês).





Daniel Lie: Hoje estreamos a Rotten TV, um projeto de inovação digital que estamos desenvolvendo com apoio do British Council, em três regiões: na América Latina, sob a coordenação da Casa do Povo; na Escócia, com a Jupiter Artland; e na Indonésia, com o Cemeti-Institute for Art and Society.
Em todas estas regiões temos buscado pensadores de distintas áreas do conhecimento que se dedicam ao tema da podridão, do apodrecimento e o entendem. É um projeto de aprendizado coletivo, um projeto de conexão entre diferentes espaços nos quais desenvolvi afeto, trabalho e relações.
Estamos aqui com Marilia Loureiro, curadora da Casa do Povo, e com a Giuliana Furci, diretora da Fundación Fungi. Nós nos conhecemos em 2016, quando estive no Chile e tivemos uma aula que foi minha primeira aproximação com o universo da micologia. Giuliana, uma coisa que ficou muito forte para mim foi que você falava com muito afeto e amor, de uma maneira didática, e que, ao mesmo tempo, não era simples. E o que ficou foi esse afeto que você tem por esse universo… um afeto como o que temos pelas pessoas que amamos.
Giuliana Furci: Queria dizer, Daniel, que sinto um afeto muito profundo por você e que o seu olhar para a podridão, a meu ver, sempre foi vanguardista. De modo que há muito amor vindo da decomposição e da degeneração, que acredito serem termos muito importantes para o que vamos tratar hoje.
Quando se fala do início da vida, tudo tem a ver com pontos de vista: alguém pode se deter em partes distintas de um ciclo energético e dizer que é ali onde ela começa ‒ e essa indistinção também vem romper com esquemas de ordem e linearidade…
Estou muito agradecida pelo espaço para falar sobre essas coisas, que são espaços que muitas vezes existem no interior de alguém, ou em uma conversa com uma árvore, ou com um animal em um bosque, mas raramente em uma conversa com humanos e humanas…
DL: Para começarmos, gostaria de dizer que fico encantade com as múltiplas simbologias do “podre” ‒ porque nos permitem falar da passagem do tempo, da quebra da binariedade entre vida e morte, da marginalização de processos que são condições intrínsecas aos corpos, aos organismos orgânicos… Neste ano venho desenvolvendo a “Rotten Research” – a pesquisa podre –, um projeto mais amplo que assume expressões diversas como textos, a Rotten TV, falas, exposições, criação de imagens, e me interessa escutar e aprender com as diferentes visões que aparecem, não tanto acerca do processo que leva do “fresco” ao “podre”, e sim do “podre” ao “pós-podre”: o que vem depois do podre e como manter-se podre. Então, para começar, minha pergunta seria qual a diferença entre algo que se fermenta e algo que apodrece, e também gostaria que você traçasse considerações acerca da podridão do ponto de vista da micologia.
GF: Acho que aqui é necessário estabelecermos um marco mais amplo. Primeiramente, quando falamos de fungos, estamos falando de um reino, e dentro deste reino existem organismos que decompõem e outros que não decompõem. Os fungos micorrízicos, por exemplo, que se associam a árvores vivas, não estão em um processo de decomposição, mas sim em simbiose; ambos os processos não podem ser pensados em separado ‒ e poderíamos inclusive falar da decomposição como uma simbiose.
Em relação à fermentação, normalmente não falamos dela como um processo de decomposição, mas ela é efetivamente o primeiro passo desse processo. Os fungos engatilham uma cadeia química, decompondo os açúcares e hidratos de carbono que fazem parte das diferentes composições de vida, e é aí que se inicia o processo da decomposição.
Dentro do reino dos fungos, existem mofos que são decompositores por excelência. Existem os liquens, que são uma simbiose, que não estão decompondo no sentido da podridão, mas num sentido elemental, para criar solo. Então a decomposição não é exclusiva do apodrecimento. Quando algo começa a apodrecer, para muitos fungos é o nascimento, porque é quando eles encontram um espaço para proliferar, para se reproduzir, em um processo de desenvolvimento que é o início de suas vidas. Há muitas espécies de fungos ou mofos cujo ciclo de vida completo é o que, de fora, vemos como putrefação.
De maneira subjacente, está o fato de que a energia não se perde, a energia está em processo de transformação contínua, e isso ocorre graças à putrefação e à decomposição.
Do ponto de vista da micologia, quando o corpo de um animal ou de uma planta deixa de metabolizar, não é possível afirmar que esse organismo esteja morto. Por isso, não só é questionável, como também equivocado afirmar que o fim de um corpo físico seja o fim da vida. Proponho inclusive que o momento mais importante de uma árvore seja quando ela cai e começa a retornar ao solo; cada organismo é uma composição de energia transformada, que se fixa temporariamente. Cada corpo fixa energia e, a partir da decomposição, ele a devolve. Nesse sentido, acredito que a decomposição seja um ato heroico.
DL: O que você disse é muito bonito, isso de devolver a energia, porque, quando olhamos para algo que está podre, sob um ponto de vista do pensamento hegemônico, consideramos que aquilo está morto ‒ o que cria um sentimento de distância e afastamento, que é o mesmo que temos em relação à morte humana. Mas quando observo atentamente frutas ou vegetais apodrecendo, começo a ver muitas coisas acontecendo ‒ reconheço que tem muita vida ali: vejo mofo, insetos, inúmeros elementos e cores. E é por isso que o podre para mim é não binário: por não estar nem vivo, nem morto, esses limites são quebrados… E talvez a questão mais forte seja reconhecer que isso um dia vai acontecer comigo, com você, com todas as pessoas ‒ nós todes vamos apodrecer.
GF: Claro, mas essa é a única maneira de devolver a energia. A vida é um processo de fixação de elementos na criação de um corpo físico ‒ somos simplesmente parte de um ciclo de energias que vamos fixando; no momento de morrer, voltamos para a terra, que vai ser o substrato para outra fruta ou planta que vai alimentar outro animal. Então não há um começo ou um fim, é um contínuo do qual fazemos parte.
DL: Mas quando começa o processo de apodrecimento? Por que as coisas apodrecem?
GF: O processo de apodrecimento começa depois do pico máximo de reprodução. A única função de um fruto, por exemplo, é de produzir sementes para propagar a espécie ‒ que é a forma de manutenção da espécie em um sistema. Existe um momento em que a semente está no ponto de cair para se espalhar; passado esse ponto, passada a oportunidade de se propagar como espécie, inicia-se a decomposição. E o mesmo acontece em relação aos seres humanos: a decomposição em geral começa passado o pico da reprodução: nas pessoas de mais idade, começam a aparecer fungos na pele, nas unhas; o cabelo e os dentes começam a cair…
A putrefação é a possibilidade de que outro ser venha a se compor: você volta a ser substrato, volta a ser um bloco de construção.
DL: O tempo todo estou fazendo um paralelo com a decomposição para além de humanes, como os vegetais. Mas às vezes penso no corpo humano. Me parece muito interessante que quando comemos, ocorra um processo de putrefação dentro de nós. Comemos, os nutrientes são absorvidos e depois fazemos cocô, que é uma matéria que já está em processo de apodrecimento. Por outro lado, quando morremos, o organismo passa a realizar esse processo de putrefação e de digestão dentro de nós ‒ só que comendo a nós mesmes.
GF: Neste ponto você toca no limite do indivíduo; porque no fundo o que você está descrevendo é que nós não somos uma espécie sozinha. Um corpo não é uma espécie, um corpo é uma simbiose. Cerca de um quilo do corpo humano é composto por bactérias, fungos e outros microrganismos imprescindíveis. Uma vaca por exemplo não consegue decompor a parede celular do capim que ela come, isso só é possível porque o seu organismo foi evoluindo em simbiose com os fungos presentes em seu estômago, que decompõem as plantas para que elas possam ter seus nutrientes absorvidos. Nós também convivemos com organismos que decompõem os alimentos para que possamos nos nutrir deles. Há estudos que demonstram que cada pé humano carrega cerca de 200 espécies de fungos, que não estão ali decompondo o pé, mas possibilitando que possamos ser como somos; não somos uma espécie, somos uma simbiose, somos organismos simbiontes. Não estamos separados do que comemos, do que está em nossas entranhas, dos organismos que vivem na nossa pele, não estamos separados dos organismos com os quais convivemos. Nesse sentido, é preciso questionar, e é importante questionar: o que é um indivíduo? Um indivíduo é um ecossistema. Então quando se fala em decomposição e podridão, e desses organismos que, em algum momento, podem vir a ser favoráveis, precisamos reconhecer que eles são organismos mutualistas ‒ isto é, eles nos ajudam a ser como somos. E quando deixamos de ser da maneira que somos, também os ajudamos a se proliferar. Também somos um sistema de colaboração, somos simbiose. A decomposição e a putrefação fazem parte dessa simbiose virtuosa.
DL: Para além desse sistema de colaborações, também penso no processo de apodrecimento em termos de energia. Porque nós, que estamos agora nos comunicando pela voz, pelo olhar, ouvindo… como nos comunicamos com outras espécies? Parte de meus interesses recentes passa por essas formas de comunicação distintas, que ocorrem através do odor, da estética, mas também através da energia. Me parece muito revolucionário que algo que a maior parte da sociedade pensa que é lixo, que está morto, que não existe mais, que é considerado como um fim, esteja produzindo energia ‒ e não apenas energia simbólica, mas energia para aquecer um espaço, por exemplo ‒ então gostaria que você pudesse falar um pouco mais sobre essa conexão do podre com a energia.
GF: Os processos metabólicos requerem energia e liberam energia. Provavelmente uma das formas mais drásticas de se estar viva é o fato de gerar calor. É um processo bioquímico, no qual fungos e bactérias rompem ligações. Temos uma série de elementos na tabela periódica que se associam de diversas maneiras para formar compostos: de um elemento estático em combinação até chegar a um composto, é aí onde se inicia a vida orgânica. Quando essas ligações se rompem, a energia que os uniu é liberada. E isso volta ao meio, volta a ser intocável. Quando um corpo se compõe, ele se torna tangível. Quando ele decompõe, volta a ser intangível. À medida que você vai se alimentando, se criando, inicia-se uma composição, um sistema, no qual os elementos vão se compondo em um corpo, em algo orgânico, em algo vivo ‒ uma planta, um animal. E quando essa capacidade de se compor desaparece, inicia-se um processo que vai rompendo o organismo, que vai separando-o e tornando-o intangível ‒ de volta à terra, à atmosfera, para um sistema. E isso não é o fim da vida, é o fim da composição como a conhecemos. Quando a energia de cada corpo composto se decompõe, ela existe de maneira invisível e é decomposta de volta ao sistema. A decomposição é o processo de liberação de energia vital.
Quando a decomposição se inicia, é o começo da vida dos fungos. Do ponto de vista micológico, a vida se inicia quando o outro se decompõe. Por exemplo, você produz energia ao longo da sua vida enquanto animal. Você come, faz cocô… Você interage. Já os fungos não ingerem nem defecam, mas absorvem: eles têm uma digestão fora do corpo. Os fungos são os grandes bioquímicos da natureza, são organismos que digerem fora de seu corpo e se alimentam por absorção: os esporos viajam pelo ar, chegam na comida, encontram um ponto de apoio e, para viver e se reproduzir, secretam enzimas que decompõem o que está fora deles para absorver os nutrientes. As enzimas secretadas rompem as ligações, e isso produz calor ‒ e esse é o primeiro passo da fermentação.
Isso é o que nós chamamos de decomposição, o que chamamos de putrefação, a matéria vai sendo reduzida, vai diminuindo, mas ela não desaparece, ela se transforma, e isso ocorre por meio desses organismos que são capazes de transformar o que está ao redor deles.
DL: Para mim, na minha experiência de trabalho, tento fazer o contrário; porque me parece que esta humanidade onde estamos até hoje é muito hierárquica, sempre olhando para tudo do ponto de vista humanocêntrico. Mas quando estou trabalhando com esses seres além de humanes, para mim é o oposto. Buscar esse conhecimento com e por esses seres além de humanes, como elxs também podem ser professorxs para mim. Porque esse conceito da digestão do lado de fora faz do fungo um ser profundamente ambiental, não?
Quando você fala desses processos, penso em coisas muito simbólicas, e quando você fala em romper ligações químicas, penso na morte, no luto, no rompimento de ligações simbólicas ou afetivas, ou na reconstrução delas. Porque a morte não é apenas física, mas também simbólica. De certa forma o processo de luto é um processo no qual eu também estou morrendo, o que me leva a pensar na complexidade desse ecossistema afetivo e em uma cegueira da sociedade, de não entender que este mundo também é o mundo de todos os seres que estão aqui, que eles têm os mesmos direitos e a mesma importância.
GF: Sim, sim, mas é que no fundo nós nunca fomos separados uns das outras. Nós não somos ‒ quer dizer, o que é um indivíduo? Até que ponto somos alguém?
Outro dia me perguntaram: “Olha, parece que tem um fungo agora que parece que é pior que a Covid-19”, comentaram comigo referindo-se ao black fungus, o fungo negro. E eu expliquei, dizendo: “Olhe, a vida é um contínuo à medida que há condições para algum organismo”. Quando um corpo está imunodeprimido, é uma oportunidade para outro organismo se proliferar e iniciar sua vida. Julgar isso como bom ou ruim é uma concepção humana. Quando um corpo está imunodeprimido pós-Covid, como vimos sobretudo na Índia, passa a existir um ambiente propício para que um fungo em particular se prolifere, viva e se reproduza. O fungo não é um ser mau que vem matar as pessoas que sobreviveram à Covid-19 ‒ esse processo de pensamento é completamente humano. E isso nos leva também ao conceito dos equilíbrios: a Covid-19 veio romper muitos equilíbrios, falsos equilíbrios, e questionar o equilíbrio nos leva a perceber que nada é estático, e os processos de decomposição e putrefação demonstram que nada é estático. Demonstram graficamente o quanto a vida é pouco estática. Toda nossa geração foi doutrinada a acreditar que existe um estado estático de êxito na vida, e isso é algo que não existe ‒ a vida não é estática.